p/Maria da Conceição D. Magalhães
O que vou relatar aqui é fruto da construção de uma prática referenciada no trabalho com pessoas portadoras de necessidades educacionais especiais, sejam elas alunos ou professores. Espero que meu relato possa ajudar aos que acreditam ou desejam um mundo mais inclusivo. Sou professora do ensino fundamental e trabalho na Escola Municipal Antônia Ferreira, na periferia de Belo Horizonte. Esta escola possui 17 salas e funciona em três turnos. No primeiro, atende a crianças do segundo ciclo (9, 10 e 11 anos). No segundo, a crianças do primeiro ciclo (6, 7 e 8 anos) e, no noturno, o atendimento é para os jovens e adultos. Eventualmente este ano, a escola tem duas turmas do segundo ciclo no turno da tarde. Parte de seu alunado é de classe média baixa e parte é bem pobre. É comum as pessoas estranharem o fato de eu ser cega e trabalhar em uma escola regular, alfabetizando alunos ditos "normais" e, entre eles, uma criança com paralisia cerebral que não fala e tem coordenação motora bastante comprometida. Vivemos hoje a busca de preparo ou a tentativa de se cumprir o imposto por lei quanto à inclusão dos portadores de necessidades específicas, como pessoas capazes de exercer sua cidadania em diferentes espaços, independente de terem ou não "perfeições" ou "imperfeições" físicas ou mentais. Ser cega me mostrou que a escola não tem conseguido formar pessoas que sentem prazer na leitura, tal é e sempre foi a dificuldade que tive para conseguir ledores ao longo de minha vida estudantil ou profissional. Mostrou-me também como a leitura em voz alta é, para muitos, traumatizante e desritmada. Apontou-me a dificuldade que as pessoas que enxergam têm para descrever imagens, cenários ou espaços físicos. A falta de visão Atrasou minha vida escolar e profissional. Afastou-me de alguns e fortaleceu minha união com outros. Ensinou-me que o nosso mundo não é só imagens, cor e brilho. Enfim, me fez dar mais valor à vida e às relações humanas. Conscientizar-me de que a minoria da qual faço parte não é tão pequena assim e de que ela também pode ser produtiva me levou a procurar mais informações e encontrei na literatura e na pesquisa caminhos para minha vida profissional. Escolher um trabalho altamente visual exigiu muita fé, que encontrei em valores religiosos, e muita vontade de conseguir ser e fazer. Esta opção me levou à vivência de sentimentos extremos e dicotômicos, principalmente no início de minha vida profissional. Por um lado, vivia a empolgação exagerada por qualquer avanço percebido em meus alunos e por outro, a frustração por ter consciência de que aqueles avanços eram insignificantes tanto em relação aos meus ideais, quanto ao produto esperado pela escola. A satisfação pessoal por estar construindo uma relação horizontal com alunos e pais era acompanhada pelo constrangimento de ser e de fazer tão diferente do ser e do fazer de meus pares de trabalho. Minhas vivências, leituras e os meus sonhos embasaram minha postura em sala de aula, o que me levou a procurar, fora de meu trabalho, pessoas que tinham a prática que eu almejava. Era preciso estudar, pesquisar, consultar, trocar experiências e avaliar com pessoas que tinham a mesma concepção de escola. Esta decisão me ajudou a avançar em meus ideais, mas também distanciou-me dos colegas de trabalho. Minhas diferenças, necessidades e dificuldades me trouxeram sofrimento, constrangimento e muita busca de melhoria e superação. Aprendi a importância da organização, da pesquisa, dos estudos, da avaliação constante e principalmente dos registros na vida do professor, sobretudo se ele é diferente. Alfabetizar exigiu de mim o que se exige de qualquer alfabetizador, ou seja, muito estudo sobre o tema e como a criança vivencia este processo; muita atenção aos conhecimentos prévios, interesses e avanços apresentados pelas crianças. Ter claro e deixar claro para cada aluno que ler e escrever são habilidades construídas historicamente, fruto de necessidades culturais. Tudo isso misturado com amor, determinação, respeito e amizade. Minhas experiências como estudante em escolas reculares ajudou-me a compreender melhor meus alunos "diferentes". Como eles, sempre fui uma pessoa "especial" junto aos meus grupos de convivência. Trabalhar com uma aluna portadora de paralisia cerebral me remeteu ao meu passado. Lembrei-me de minhas frustrações diante das inúmeras situações de querer e não poder ou não conseguir, vivenciadas por mim ao longo de minha vida, devido à acentuada deficiência visual e posterior cegueira. Recordei-me da grande ansiedade que sentia em muitos destes momentos e de quanto silenciosamente sofria e desejava que alguém adivinhasse meus pensamentos, se aproximasse e estendesse a mão. O que hoje sei, aprendi buscando soluções para as dificuldades surgidas, adaptando e adquirindo materiais; planejando e improvisando com freqüência, de acordo com a necessidade e mesmo por não poder contar com a ajuda de algumas colegas. Preparei-me procurando não aceitar ou combatendo as frustrações com a dinâmica perversa da escola, com seus tempos estrangulados e a abundância de incredulidades. Continuo porque sinto prazer, gosto de estar com meus alunos, de descobrir o que não sabem, de pensar em intervenções que podem ajudá-los a entender o que estão fazendo ou desenvolvendo. Sinto satisfação ao perceber seus avanços, ao sentir a auto-estima ou auto-confiança se desabrocharem. Eu me realizo com eles. Eu me vejo neles. Cresço com eles. Por eles e com eles aprendi a me valorizar e ter um pouco mais de segurança no que faço. Espero que como eu, eles também consigam ser entendidos, queridos e aceitos.
Maria da Conceição Dias Magalhães Fonte: Texto apresentado na oficina "O Trabalho em Sala de Aula Envolvendo o Aluno com Deficiência Visual" Seminário "O Educador e o Processo de Inclusão - Diagnóstico da Educação Inclusiva no Ensino Fundamental em Belo Horizonte e Contagem" realizado nos dias 04 05 de abril de 2002 pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC/MG.
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